Baixar arquivos vai virar crime?

Há muito se discute se seria uma violação criminosa dos direitos autorais baixar pela internet filmes, músicas e outras obras de arte. No meio jurídico tem prevalecido, inclusive no Brasil, a idéia de que se não há a intenção de lucro não há crime, embora não sem contestações consistentes.

Essa questão já relativamente “antiga” (considerando o hipertempo em que nos comunicamos) voltou à tona semana passada, no dia 10 de julho, com a aprovação pelo Senado Federal da proposta substitutiva do Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 84 de 1999, a chamada Lei Azeredo, que “dispõe sobre os crimes cometidos na área de informática e suas penalidades“. Como houve mudança na redação da proposta original, o texto final dos senadores volta para ser apreciado pelos deputados federais, entre os quais já houve até requerimento de urgência na apreciação.

O ponto da discórdia é inserção no código penal (título “crimes contra a incolumidade pública”, capítulo “crimes contra a segurança dos sistemas informatizados”) do artigo 285-B, com a seguinte redação:

Obtenção, transferência ou fornecimento não autorizado de dado ou informação

Art. 285-B. Obter ou transferir, sem autorização ou em desconformidade com autorização do legítimo titular da rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, protegidos por expressa restrição de acesso, dado ou informação neles disponível:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Parágrafo único. Se o dado ou informação obtida desautorizadamente é fornecida a terceiros, a pena é aumentada de um terço.

No mesmo dia o senador petista Aloizio Mercadante garantiu que a proposta não criminaliza downloads e a Agência Senado elaborou uma matéria especial explicativa, na qual consta o seguinte sobre o art. 285-B:

A redação deixa claro que o crime não é cometido quando duas ou mais pessoas trocam dados (sejam eles quais forem, como filmes, músicas mp3, jogos, etc) pois nesse caso os titulares (ou donos) das redes que estão trocando as informações estão de acordo. Havia dúvida se o crime seria cometido por quem troca arquivos “piratas” (protegidos por direito autoral), mas a redação é explícita em dizer que não. Se os dados trocados violam direito autoral de outras pessoas, isso é assunto não tratado por essa lei.

Em resposta, circula na internet uma petição “pelo veto ao projeto de cibercrimes”, nesse momento com quase 60.000 assinaturas, que acusa o Senado de ter aprovado o projeto de forma velada e sai “em defesa da liberdade e do progresso do conhecimento da internet brasileira“, afirmando que as iniciativas legislativas “prestam um desserviço à sociedade e à cultura brasileiras, travam o desenvolvimento humano e colocam o país definitivamente para debaixo do tapete da história da sociedade da informação no século XXI” e pedem aos congressistas basileiros que o substitutivo seja rejeitado, “pois atenta contra a liberdade, a criatividade, a privacidade e a disseminação de conhecimento na Internet brasileira“.

Sem dúvida, caso seja aprovada, a redação do art. 285-B pode dar margem à interpretações que abarquem os downloads como crime, e nada assegura que a explicação agora manifestada pelo Senado será mantida. Sim, a redação do artigo fala em autorização do responsável pela rede, não em direito do autor. Mas nada impede que o titular da rede seja responsabilizado por permitir que ele seja utilizada para violações de direitos autoriais. Seria uma forma de centralizar o ataque dos donos dos copyrights, que não precisariam processar individualmente milhares de pessoas, mas o tal titular da rede, facilmente identificável.

Isso é um problema, mas que pode ser resovido com a simples retirada desse dispositivo do projeto de lei. Sim, pois a mera alteração da redação não terá o poder de impedir que a interpretação da norma seja criativa ou destrutiva, para um lado ou para outro. Pensando nisso assinei a petição, até para auxiliar nessa iniciativa, que pode acabar fomentando o debate.

Mas acho que há exagero nessa insurgência integral contra o projeto e que os argumentos não são os mais consistentes, além de evidenciarem uma desatenção crônica à atividade legislativa nacional.

O texto aprovado pelo Senado é bastante claro ao prever como crimes invasão de rede, acesso e divulgação de dados pessoais, envio de vírus e phishing. Só isso já é o suficiente para não se jogar o bebê fora com a água suja.

Argumentar pela liberdade da internet, de forma generalizada, e um sofisma, pois não é a rede mundial, como um todo que corre perigo. Pense-se que quando se acessa um a página, do Uol, da Globo ou do Terra, por exemplo, o internauta tem a autorização de quem mantém os dados no ar. O mesmo quando se lê uma pesquisa e a utiliza com citação de fonte. Não é necessário recorrer à argumentação de que se o projeto for aprovado será o fim do mundo democrático da internet.

Na minha opinião, trata-se de uma discussão política, de o que a sociedade acha que deve ser uma regra, qual o direito deve ser protegido. Não é uma verdade científica ou um ponto de vista jurídico que vai fundamentar o debate. Em vez disso, devem ser colocado argumentos diretos e francos, no sentido de que baixar música, filmes e livros não deve ser impedido, porque é uma forma de ampliar a apreciação da obra de arte, de fazê-la circular, multiplicando-a infinitamente entre os internautas interessados. Tem que separar quem quer ganhar dinheiro com o trabalho dos outos de quem apenas quer apreciar uma obra de arte ou se entreter sem ter que pagar por isso. Tem que ser assumido que não se protegerá o lucro desmedido das gravadoras, editoras e distribuidoras que não prestam um serviço decente ou inteligente. Tem que ser dito que quanto menos a arte ficar atrelada ao dinheiro, mais as manifestações serão livres.

Agora é necessário fazer um mea culpa. Onde estavam todos esse 60.000 peticionantes enquanto esse projeto tramitava pelas duas casas do Congresso Nacional. O texto original é de 1999. São dez anos e só hoje a sociedade civil se manifesta publicamente. Os centros de estudo acadêmicos nessa área não perceberam? Um atraso inexplicável, novamente, considerando as possibilidade do hipertempo.