Não seja inocente: o ECAD entende muito bem a Internet

YouTube na mira do ECADEm meio às recentes discussões sobre o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD, engatilhadas por conta da cobrança de direitos autorais contra o blog Caligraffiti, percebi que muitas pessoas têm repetido o argumento de que o Escritório não entende o funcionamento da Internet, aliado à tese de que a legislação nacional atual é ultrapassada ou está desatualizada, porque foi aprovada quando a Internet ainda “engatinhava” no Brasil. Afirmo que essas são considerações inocentes, que não percebem uma verdade cruel: o ECAD sabe muito bem como funciona a Internet. Da mesma forma, não se deveria ignorar que a aprovação da Lei 9.610 em 1998 já considerava os desafios que a cultura digital traria para o mundo do direito autoral.

Malvadinho: "Os últimos dinossauros morreram... há 65 milhões de anos... dentro do escritório do ECAD".
A piada é boa, mas precisamos tomar cuidado para o ECAD não rir por último.

Como fundamento para a minha afirmação, cito um trecho de um documento chamado “Propriedade Intelectual e a Infraestrutura Nacional da Informação: O Relatório do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual“:

A Lei de Direitos Autorais dá a um proprietário de direitos autorais o direito exclusivo “de distribuir cópias ou gravações do trabalho com direitos autorais” para o público. Não está claro sob a lei atual que a transmissão pode constituir uma distribuição de cópias ou gravações de um trabalho. No entanto, no mundo dos sistemas de comunicação de alta velocidade é possível transmitir uma cópia de uma obra de um local para outro. Este pode ser o caso, por exemplo, quando um programa de computador é transmitido a partir de um computador para dez outros computadores. (…) Portanto, o Grupo de Trabalho recomenda que a Lei de Direitos Autorais seja alterada para reconhecer explicitamente que cópias ou gravações de obras podem ser distribuídas ao público por transmissão, e que tais transmissões são abrangidas pelo direito exclusivo de distribuição do proprietário dos direitos autorais. (p. 213)

Está escrito com todas as letras que a legislação não é clara quanto aos limites do direito autoral no âmbito da Internet, e que por isso mesmo a legislação deveria ser alterada para que houvesse expressa previsão aplicável também para a Internet, no caso, em relação a distribuição de cópias ou gravações mediante a transmisão pela Internet.

Pois esse relatório foi escrito em setembro de 1995, por uma Força Tarefa de Infraestrutura Da Informação, composta por diversas entidades sob a coordenação do Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos da América. E 1995 foi justamente no ano em que a Internet tinha entrado em atividade comercial no Brasil.

Contra a suspeita de que esse documento não estaria no compasso da realidade atual, sigo citando o documento. Primeiro, um trecho que deixa explícita a noção de que o futuro da música estava nas mídias digitais:

Transmissões de gravações sonoras certamente irão complementar e podem eventualmente substituir as formas atuais de distribuição de fonogramas. Num futuro muito próximo, os consumidores serão capazes de receber transmissões digitais de gravações sonoras sobre encomenda – para execução em casa ou para download – da assim chamada “Jukebox celestial”. (pp. 221-222)

Segundo, palavras que afastam qualquer suspeita de que a cobrança contra blogs sem fins lucrativos não é uma invenção descuidada do ECAD:

Como não há praticamente nenhum custo ao infractor, certos indivíduos estão dispostos a fazer tais cópias (ou ajudar outros a fazê-los) por outros motivos que não uma recompensa monetária. Por exemplo, alguém que acredita que todas as obras devam ser livres no ciberespaço pode facilmente fazer e distribuir milhares de exemplares de uma obra protegida e pode não ter nenhum desejo de vantagem comercial ou ganho financeiro privado.

A partir daqui, mostra-se necessário estabelecer um vínculo entre as conclusões elaboradas nos Estados Unidos e as alterações introduzidas na legislação nacional pela Lei 9.610/98. Pois, de um lado, trajetória da prática dessa conspiração internacional é fácil rastrear. A ordem foi dada internacionalmente em 1996 com a aprovação na Organização Mundial da Propriedade Intelectual dos Tratado de Direitos Autorais (WIPO Copyright Treat) e do Tratado de Performances e Fonogramas (WIPO Performances e Phonograms Treaty), cujo objetivo admitido era justamente ampliar a abrangência dos direitos autorais, como uma resposta aos desenvolvimentos da tecnologia da informação.

E do outro lado, voltando ao tal relatório, basta comparar a proposta elaborada pela Força Tarefa nos EUA em 1995 com o que foi aprovado pelo Congresso Nacional no Brasil em 1998. Lembro que a intenção da Força Tarefa era que a lei americana de direito autoral se tornasse expressa, em razão do potencial de distribuição da “Jukebox celestial”, no sentido de que “cópias ou gravações de obras podem ser distribuídas ao público por transmissão, e que tais transmissões são abrangidas pelo direito exclusivo de distribuição do proprietário dos direitos autorais“. Por isso foram propostas no relatório alterações legislativas que deixassem explícito direito exclusivo do titular do direito do autor para distribuir cópias de obras mediante a transmissão pela Internet.

Pois entre as alterações que a Lei 9.610/98 promoveu no Brasil, estão justamente a ampliação do conceito de transmissão para abarcar a Internet e a definição do conceito de distribuição, inexistente na Lei 5.988/73. Abaixo, as inovações estão marcadas em sublinhado e as coincidências em negrito:

Proposta da Força Tarefa dos EUA

“Publicação” é a distribuição de cópias ou gravações de uma obra ao público mediante a venda ou outra transferência de propriedade, ou por aluguel, por arrendamento ou por empréstimo, ou por transmissão. A oferta para distribuir cópias ou gravações para um grupo de pessoas para fins de posterior distribuição, execução pública, ou exibição pública, constitui publicação. A execução ou exibição pública de uma obra por si só não constitui publicação.

“Transmitir’ uma execução ou exibição é comunicá-la por qualquer dispositivo ou processo pelo qual imagens e sons são recebidos além do lugar de onde eles são enviados. “Transmitir” uma reprodução, é distribuí-la por qualquer dispositivo ou processo pelo qual uma cópia ou gravação da obra é fixada além do lugar de onde ela foi enviada.

Lei 9.610/98

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: (…)

II – transmissão ou emissão – a difusão de sons ou de sons e imagens, por meio de ondas radioelétricas; sinais de satélite; fio, cabo ou outro condutor; meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético; (…)

IV – distribuição – a colocação à disposição do público do original ou cópia de obras literárias, artísticas ou científicas, interpretações ou execuções fixadas e fonogramas, mediante a venda, locação ou qualquer outra forma de transferência de propriedade ou posse;

Em resumo, desde pelo menos 1995 está documentado que a defesa dos direitos autorais está plenamente ciente dos potenciais culturais da Internet e por isso se organiza, nos EUA, no Brasil e internacionalmente, para que a legislação possa contemplar os seus interesses. Nesse contexto, não sobra nenhum motivo para crer que o ECAD não saiba o que está fazendo quando atua sobre mais de mil sites na cobrança da “execução de obras musicais através de streaming” ou que a Lei de 9.610/98 está desatualizada. O ECAD está consciente de sua luta contra a Internet e tem exatamente na letra da legislação uma de suas armas. O ECAD sabe que está remando contra a tecnologia e a lei de direito autoral foi feita para restringir a liberdade de circulação da cultura.

Felizmente, nem o Escritório está sozinho nem a lei deve ser obedecida cegamente. A sociedade sempre se pode fazer ouvida e o direito que emerge das práticas sociais, inclusive no uso da Internet, não pode ser desconsiderado. Por isso mesmo, não ter ilusões quanto ao papel real do ECAD e da Lei 9.610/98 é um primeiro passo para fazer prevalecer uma interpretação mais justa dos limites dos direitos autorais.

7 comentários em “Não seja inocente: o ECAD entende muito bem a Internet

  1. Puxa Rená, tempão que eu não passava por aqui. E acho que sei o motivo: é que você escreve muito, e sobre temas muito interessantes. Aí eu sempre fico me perguntando quantas horas tem o seu dia, de onde você tira tempo para isso tudo, e me perco na leitura. O blog continua fascinante, e voltarei a frequentá-lo mais!!

    Em relação a este post, eu penso, totalmente desprovida de embasamento ou argumentação, que George Orwell previu um futuro um pouco mais distante que 1984, mas acertou em quase tudo. A investida dos “governos”, de forma geral, contra a “liberdade de expressão” tecnológica me dá a sensação que a rede acaba nos prendendo…

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    1. Sê bem vinda, Ju. As portas estão abertas. Aliás, preciso arrumar tempo para republicar aqui os posts dos outros blogs que você bem conheceu 😉
      Quanto à distopia Orwelliana, temos a esperança de ainda estarmos numa democracia, onde as pessoas governadas podem questionar o que fazem as pessoas governantes. A questão é que se não aproveitarmos essa abertura, ela não vale de muita coisa.

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  2. Para registro, cheguei ao relatório como uma nota de rodapé do texto “The Ancient Doctrine of Trespass to Web Sites”, do Trotter Hardy, o qual por sua vez constava como nota de rodapé no livro “Domínio Público: cercando os bens comuns da mente”, do James Boyle.

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