Sobre a Convenção de Budapeste: trecho da dissertação “O Direito Achado na Rede”

Em 2010, organizei minha dissertação de mestrado (“O Direito Achado na Rede: A emergência do acesso à Internet como direito fundamental no Brasil“) em duas grandes metades. Primeiro, analisei as justificativas dos projetos de lei de regulação do uso da Internet que precederam o Projeto de Lei dos Cibercrimes (PL 84/1999, PLS 76/2000 e PLS 137/2000); e, segundo, como essa proposta normativa catalisou a elaboração do Marco Civil da Internet no Brasil.

Na terceira parte do Capítulo 1, chamada “Uma história de expansão do direito penal“, revisei os argumentos comuns ao conjunto de PLs que formam o que denominei de pré-história do Marco Civil da Internet. Evidenciei a importação irrefletida de normas internacionais, tais como “Lei de Direito de Performance Digital em Gravações Sonoras” (Digital Performance Right in Sound Recordings Act of 1995), “Lei Sem Roubo Eletrônico – NET” (No Electronic Theft Act), “Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – WCT”, e “Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital” (Digital Millennium Copyright Act – DMCA). Dei maior atenção ao Acordo Comercial Anticontrafação – ACTA e, particularmente, à Convenção de Budapeste sobre Cibercrime.

Nesse contexto, propus a seguinte “reflexão, a respeito da Convenção sobre Cibercrime, também chamada de Convenção de Budapeste” (fls. 56-59):

(…) Firmada em 2001 na capital da Hungria, o documento apenas entrou em vigor em julho de 2004. E apesar de subscrita por mais de 40 países, está em vigor apenas em 29, estande pendente de ratificação em 17 países, que ainda não adequaram suas normas internas às disposições da Convenção [COUNCIL OF EUROPE. Convention on Cybercrime (CETS Nº.: 185). Chart of signatures and ratifications].

Apesar de ser o único documento internacional relevante de combate ao crimes cometidos com uso da Internet, é importantíssimo ressaltar que o Brasil não participou de sua elaboração, nem haveria espaço para tanto. A Convenção de Budapeste foi elaborada pelo Conselho da Europa com participação ativa dos Estados Unidos, do Canadá e do Japão, atuando na qualidade de países observadores. Por esse contexto, o Ministério das Relações Exteriores, em resposta a requerimento do Senador Eduardo Azeredo, opôs-se expressamente à adesão do Brasil à Convenção [INFOREL. Brasil não pode aderir a Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime. 28/05/2007, 11h46.]. Primeiro  porque não houve a possibilidade de o Brasil tomar parte de um fórum internacional transparente para a sua redação. Além disso, diversas críticas são feitas ao conteúdo da norma, cujas disposições não são integralmente compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro vigente. A adesão exigiria concessões importantes, tais como a possibilidade de interceptação ou “recolha” de dados durante a comunicação pelos próprios prestadores de serviço e de forma totalmente secreta [O art. 20 da Convenção assim dispõe expressamente (COUNCIL OF EUROPE. 23/11/2001):“Artigo 20º – Recolha em tempo real de dados relativos ao tráfego.1. Cada Parte adotará as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias para habilitar as suas autoridades competentes a: […]b) Obrigar um fornecedor de serviços, no âmbito da sua capacidade técnica existente, a: i. Recolher ou registar por meio da aplicação de meios técnicos no seu território, ou ii. Prestar às autoridades competentes o seu apoio e assistência para recolher ou registar, em tempo real, dados de tráfego relativos a comunicações específicas no seu território transmitidas através de um sistema informático.2. Quando uma Parte, em virtude dos princípios estabelecidos pela sua ordem jurídica interna, não pode adotar as medidas descritas no nº 1, alínea a), pode, em alternativa, adotar as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias para assegurar a recolha ou o registo em tempo real dos dados de tráfego associados a comunicações específicas transmitidas no seu território através da aplicação de meios técnicos existentes nesse território.3. Cada Parte adotará as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias para obrigar um fornecedor de serviços a manter secreto o facto de qualquer um dos poderes previstos ter sido executado, bem como qualquer informação a esse respeito.” Para uma crítica a esse e outros dispositivos da Convenção, ver AMADEU, 24/08/2008, 6h47. Convenção de Budapeste quer obrigar provedores de internet a violar a comunicação em tempo real. In Blog do Sergio Amadeu.]. Nesse sentido, a reunião do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) realizada em abril de 2010 pavimentou o caminho para a elaboração de uma Convenção no âmbito da ONU. [PRESTES, Cristine. Países estudam criação de uma convenção sobre cibercrimes. In Valor Online. 16/04/2010.]

Essa conjuntura desconstrói qualquer fundamento para a adesão do Brasil à Convenção sem uma efetiva ponderação detalhada sobre suas disposições. Sendo certo que o próprio Senador admite que o documento é controverso, não haveria portanto motivo para defender sua interiorização no ordenamento brasileiro, ainda mais porque inexiste menção a quaisquer indicativos de que a norma tenha sido aplicada com sucesso.

Não há necessidade de avaliar a Convenção de Budapeste para perceber que sua adoção é proposta sem nenhuma crítica, sem nenhuma avaliação avalizada, mas apenas com base no argumento de que se trata de uma norma vigente no exterior. Esta postura denota uma subserviência que ignora a realidade local, sendo pertinente o argumento de que o Brasil não está no mesmo patamar legislativo nem vive a mesma realidade dos países que adotam a Convenção.

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