Privacidade no mundo digital: um direito de toda pessoa

Em outubro de 2013 fui gentilmente convidado a escrever sobre a “privacidade no mundo digital” para a Revista e, produzida mensalmente pelo SESC-SP, o Serviço Social do Comércio – Administração Regional no Estado de São Paulo.

Revista e: Atividades Culturais - edição jan/2014, 199
Revista e: Atividades Culturais
edição jan/2014, nº 199

Olha o giro do mundo em quatro meses. Embora as minhas preocupações continuem as mesmas e no panorama pouca coisa tenha mudado de fato, por outro lado, vários acontecimentos me parecem ter ampliado a atenção das pessoas comuns para o quanto é curioso o que se faz na Internet com a vida privada. Destaco três eventos: a recentíssima compra do Whatsapp pelo Facebook, que transfere para Mark Zuckerberg acesso imediato a meio bilhão de agendas de telefones e outros dados com alto potencial de mineração; o lançamento da revista The Intercept pelo jornalista Glenn Greenwald (o mesmo que divulgou as revelações de Edward Snowden); e, claro, a mudança no Marco Civil da Internet, projeto de lei que nas últimas duas versões propostas (de 12/12/13 e 12/02/14) passou a prever a guarda obrigatória de metadados e que gerou a campanha #16igualNSA.

Reproduzo a seguir o texto que elaborei para o SESC-SP, publicado originalmente na sessão “Em Pauta” da edição nº 199 de janeiro de 2014 (ao lado do belo artigo do sociólogo e jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, sobre o mesmo tema):

privacidade no mundo digital

por Paulo Rená

O presidente dos Estados Unidos da América monitora tudo o que você faz na internet. Há alguns meses, essa afirmação não seria vista como mais do que uma teoria da conspiração fantasiosa. Mas, a partir das denúncias de Edward Snowden, um ex-técnico da CIA, o mundo vem conhecendo, com cada vez mais detalhes concretos, o modo pelo qual a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês), a pretexto de combater o terrorismo, construiu uma verdadeira máquina de vigilância digital mundial, sob o comando do presidente Barack Obama. Mais do que uma desconfiança paranoica, hoje existem provas reais de que os EUA espionaram secretamente os e-mails da presidente Dilma Rousseff, as ligações da chanceler alemã Angela Merkel e até os planos de renúncia do Papa Bento XVI.

E como ficam as pessoas comuns? Quem não lida com segredos de Estado e política internacional tem motivos de verdade para se preocupar? O uso diário da tecnologia, para estudos, trabalho ou mesmo lazer, representa algum risco para a intimidade? Afinal, ainda existe privacidade no mundo digital?

Em primeiro lugar, é importante ter em mente que não se trata apenas da internet. Além dos computadores conectados na rede, também é necessário pensar sobre cartões de crédito, telefones celulares, tocadores de mp3, videogames acionados por movimento e até mesmo os novos modelos de carros e televisões inteligentes: enfim, todos os dispositivos pessoais que guardem informações digitalizadas. Somem-se a esse conjunto as câmeras de vigilância, catracas eletrônicas, identificação biométrica e registros ligados ao CPF. Há um número crescente de recursos disponíveis para construir um mapa completo sobre a vida de qualquer pessoa.

Quem puder reunir e analisar esse conjunto de dados, facilmente saberá com quem essa pessoa conversa e a que horas, os livros comprados, as músicas ouvidas, com o que ela se diverte em casa, lugares visitados, remédios usados, programas a que assiste. E aqui surge um ponto crítico: de um lado, um sujeito comum pode achar que seus hábitos individuais não sejam do interesse de ninguém; ao mesmo tempo, mesmo que quisesse se preservar da curiosidade alheia, ele praticamente não detém meios para saber a extensão do seu rastro digital e, pior, não teria sequer como saber quem o está vigiando.

Essa situação afeta diretamente a privacidade, a qual deve ser entendida como o direito que cada pessoa tem de traçar, sobre a sua própria vida, a linha que separa a porção compartilhada e a parte reservada. Ela constitui uma escolha livre e individual, de acordo com suas próprias convicções e forma de ver o mundo. Uma garantia de que é possível ter uma vida privada.

Nesse conceito amplo, a privacidade vai muito além do ditado “quem não deve não teme”. Não se trata de um temor contra a revelação de segredos, de um medo de que aspectos obscuros sejam conhecidos. Pensar assim levaria à conclusão de que seria necessário ter feito algo errado para ter direito à privacidade, um contrassenso cruel no qual justamente as pessoas que se portam corretamente seriam punidas com uma reduzida proteção sobre a própria vida.

A privacidade não é uma defesa para criminosos, nem uma cobertura para condutas erradas. É uma garantia de liberdade, para preservar a individualidade das pessoas, nos termos em que elas mesmas quiserem. Do conforto do lar ao ambiente de trabalho, o que importa é ter a opção sobre abrir ou fechar a porta do quarto, sobre revelar ou não o valor do seu contracheque, sem nenhuma imposição sobre essa escolha, e com a segurança de que não haverá desrespeito.

Essa lógica vem sendo abandonada no mundo digital. Chegou-se ao absurdo de um monitoramento governamental indiscriminado, inclusive sobre pessoas e países sabidamente inocentes, simplesmente porque a tecnologia facilita esse acesso às vidas privadas. Mas já antes desse imbróglio internacional, ainda no âmbito interpessoal, há muito tempo, anuncia-se que a internet teria matado a privacidade. A vastidão de uma memória eletrônica coletiva, com o passado mais remoto prontamente acessível por qualquer ferramenta de busca, seria a própria destruição da vida privada.

Muito simplificadamente, o termo digital se refere aos dois dígitos 0 e 1, a base binária simples que permitiu os mais complexos desenvolvimentos na área da tecnologia da informação e comunicação. Em vez de cartões perfurados, válvulas e telégrafos, hoje os seres humanos podem contar com níveis sobre-humanos de armazenamento, processamento e comunicação de informações digitalizadas. São essas as três melhorias fundamentais que, combinadas, formam a base da internet, para a qual convergem todas as fronteiras do que se pode chamar de mundo digital.

Efetivamente, em comparação com papel, filmes, discos e todos os meios analógicos, é infinitamente mais prático encontrar informações antigas se elas estiverem disponíveis em meios digitais, e isso vale para tanto para obras culturais e notícias públicas, quanto para acontecimentos privados. A tecnologia do cartão de crédito registra com precisão cada compra feita, diferentemente do dinheiro em cédulas e moeda. Mas, em muitos aspectos, para as pessoas comuns, tudo o que está posto na internet foi lá colocado por elas mesmas, e esse fator é crucial.

A questão está, novamente, no poder sobre a própria vida e na noção de que exercer essa liberdade de opção não pode significar uma restrição de privacidade. Na verdade, sempre que uma foto é divulgada em uma rede social, há um elemento de escolha, uma vontade individual que seleciona o que se admite compartilhar. Por mais constrangedora que seja a imagem, talvez para aquela pessoa, naquele momento, a graça e o valor humorístico tenha tido um peso maior que a vergonha de se expor. Mas isso não significa, jamais, que a pessoa se dispa de todo e qualquer pudor sobre si, nem mesmo que a circulação dessa foto possa extrapolar livremente o âmbito no qual ela foi divulgada. A privacidade, considerada como uma garantia séria, exige sempre o respeito à escolha individual, nos limites em que foi efetuada.

E se o caso é de escolher, não faz sentido imaginar que a privacidade teria contornos previamente definidos, em abstrato, para todo mundo. Cada um tem o direito de definir a própria vida privada, em fronteiras que podem ser completamente diferentes das de outras pessoas. Retomando o exemplo doméstico, cada um fecha a porta do próprio quarto se e quando quiser. No trabalho, cada empregado decide se quer ou não revelar o quanto ganha mensalmente. E entre amigos, cada um conta as histórias engraçadas que escolher contar.

O compartilhamento de informações pessoais, claro, quase nunca acontece de forma tão pensada. Todo dia, o hábito de se conectar, manifestar opiniões e publicar acontecimentos privados cresce com a mesma velocidade com que a internet fascina a cada novidade. Nesse novo mundo, o cotidiano virtual vai tomando uma forma tal que para muita gente faz até pouco sentido pensar em uma separação do que acontece no contexto presencial. A vida é entendida como uma coisa só, tudo junto e misturado. E assim se podem compreender melhor dois aspectos normalmente pouco visíveis.

Primeiro, que em rodas de conversa, nas mesas dos bares, dentro de casa, nos carros, ônibus e trens, entre conhecidos ou desconhecidos, muita informação privada circula oralmente, e as redes sociais não são muito mais do que um novo espaço para interação, ainda que funcionem com amplitude e dinâmica bem maiores. Por consequência, e esse é o segundo aspecto, não subsiste a expectativa de que as leis em vigor não se apliquem ao que ocorre no mundo digital.

A realidade não segue apenas a lógica do direito. Apenas poucas violações de privacidade valerão o esforço de tempo e dinheiro inerente a uma busca por punição criminal. Mais ainda, no caso da vigilância pelos EUA, a solução por ser encontrada envolverá mais questões de poder político do que propriamente de direito. Contudo, em meio à complexidade social, que envolve política, economia, religião, ciência, entretenimento e mesmo a conveniência, o ser humano demonstra uma necessidade de definir seus limites de certo e errado em termos do que é lícito e o que é ilícito.

As leis em cada país mudam, as regras de cada grupo de convívio variam, os valores pessoais são diversos, e o desenvolvimento da tecnologia vai continuar desafiando todas as noções estabelecidas. Mas houve compromisso firmado, na Declaração de Direitos Humanos, de que “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação”. A humanidade se impôs esse princípio, escrito com todas as letras, exatamente por perceber que ele não era cumprido. Assim, é justamente quando ocorre o seu descumprimento que ele deve ser lembrado e cobrado. O mundo digital é apenas mais uma oportunidade para que se fortaleça a garantia da privacidade.

PAULO RENÁ é mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, ativista dos direitos fundamentais na internet, fundador do Partido Pirata do Brasil e gestor do projeto de elaboração do Marco Civil da Internet no Brasil

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