Histórico dos direitos autorais no Brasil

Em sua dissertação de mestrado “Função Social da Propriedade Intelectual: compartilhamento de arquivos e direitos autorais na CF/88https://i0.wp.com/upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/23/Icons-mini-file_acrobat.gif, de 2007, o jurista Pedro Nicoletti Mizukami oferece uma excelente referência para quem, como eu, pesquisa os contornos jurídicos da crise da propriedade intelectual na era da cultura digital. É um ombro de gigante, pronto para servir de ponto de partida para novas observações.

Reproduzo abaixo (mantendo a numeração original das notas de rodapé) o trecho em que o autor analisa a trajetória da legislação brasileira sobre direitos autorais. Com bastante consistência, Mizukami traçou um panorama diacrônico que vai desde a primeira menção superficial ao tema, na lei que criou os primeiros cursos jurídicos no Brasil, até as  detalhadas alterações introduzidas em 2003 na atual Lei de Direitos Autorais. Esse histórico permite perceber a evolução das expectativas normativas sobre o Direito Autoral no Brasil.

A introdução dos direitos autorais no direito Brasil

No Brasil, a história dos direitos autorais começa com a Lei de 11 de agosto de 1827, que estabeleceu os cursos jurídicos de São Paulo e Olinda. Determinou a lei um privilégio exclusivo de dez anos sobre os compêndios preparados por professores, obedecidas algumas condições.865 A regulação dos direitos autorais penetra efetivamente o ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, a partir da legislação penal e não civil. Se a imposição de normas de direitos penal relativas a direitos autorais é um evento mais recente em outros países, no Brasil sempre se enfatizou proteção por via do direito penal (cuja efetividade, em relação à matéria, é cada vez mais discutível).

O Código Criminal do Império, de 1831, em sua parte III, título III (“Crimes contra a propriedade”), art. 261, criou indiretamente um direito autoral de reprodução a partir de um tipo incriminador que proibia a reprodução, em várias modalidades, de escritos ou estampas feitos, compostos ou traduzidos por cidadãos brasileiros (note-se a ausência de proteção a estrangeiros). A proteção conferida pela lei durava a vida do autor, e um período de dez anos após a morte deste na existência de herdeiros.866

O Código Penal de 1890 continuaria a tradição de se legislar a respeito de direitos autorais por meio do direito penal. O título XII, capítulo V do código, (“Dos crimes contra a propriedade litteraria, artística, industrial e comercial”) dispôs em seus arts. 342-350 a respeito da “violação dos direitos da propriedade litteraria e scientifica”. Inspirado diretamente nos códigos penais francês e português quanto a estes dispositivos,867 o Código Penal de 1890 estabeleceu em seus arts. 342 e 344 direitos autorais sobre leis, decretos, resoluções, regulamentos, relatórios e quaisquer atos dos poderes legislativo ou executivo da Nação e dos Estados, mas também fixou uma limitação a estes no parágrafo único do art. 344.868

O art. 345 manteve o prazo de vigência para os direitos de reprodução estabelecidos no Código Criminal do Império: vida mais 10 anos, se houvesse herdeiros. Importante, ainda, o art. 347, que introduziu no ordenamento jurídico pátrio um direito sobre traduções, a partir da proibição de traduções não-autorizadas, mas também fixou uma limitação: “Esta prohibição não importa a de fazer citação parcial de qualquer escripto, com o fim de crítica, polemica, ou ensino”. O art. 348, proibiu a execução ou representação “em theatros ou espetáculos públicos, composição musical, tragédia, drama, comedia ou qualquer outra producção, seja qual for sua denominação, sem consentimento, para cada vez, do dono ou autor”, e o art. 350 proibiu a reprodução de “qualquer producção artística, sem consentimento do dono, por imitação ou contrafacção”.

Nota-se, assim, a abrangência das proibições impostas pelo código, e a amplitude da idéia de obra protegida. Entre o Código Criminal do Império e o Código Penal de 1890 percebe-se nitidamente um movimento de expansão na normativa pátria de direitos autorais.

Previsão constitucional, todavia, apenas viria na Constituição de 1891, que em seu Título IV, (“Dos cidadãos brasileiros”), Seção II (“Declaração de direitos”), art. 72,, § 26, estabeleceu: “Aos autores de obras literarias e artisticas é garantido o direito exclusivo e reproduzil-as pela imprensa ou por qualquer outro processo mechanico. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei determinar”. Cogita Hallewell869 que a inclusão do dispositivo na Constituição de 1891 decorreu em razão da então recente Convenção Pan-Americana de Direitos Autorais (Montevidéu, 1889), mas não se deve desconsiderar as influências que a Constituição de 1891 recebeu da Constituição dos EUA, que já havia disposto sobre a matéria.

Todas as constituições seguintes, com exceção da de 1937, mantiveram a disposição em termos quase idênticos.870 Mudanças de redação mais substanciais e inserção de outros direitos de autor (como o de fiscalização de aproveitamento econômico) apenas ocorreram com a Constituição de 1988,871 apesar de o dispositivo principal ter mantido redação bastante similar à do art. 72, § 26 da Constituição de 1891.

A legislação civil demoraria para conferir proteção aos direitos autorais. Infraconstitucionalmente, a Lei n. 496 de 1º de agosto de 1898 (Lei Medeiros Albuquerque) seria a primeira lei brasileira de direitos autorais. Aprovada não muito tempo após a Convenção de Berna (1886 – o Brasil apenas aderiria em 1922),872 a lei encara o direito de autor como um privilégio, conferindo-lhe duração de cinqüenta anos após o primeiro de janeiro do ano da publicação (art.3º, 1º), condicionada a proteção a depósito na Biblioteca Nacional, dentro de dois anos, (art. 13), sob pena do direito perecer.

O direito de o autor fazer ou autorizar traduções, representações ou execuções também era limitado no tempo, pelo prazo de dez anos (art. 3º, 2º). O art. 19 definiu “contrafação” como “todo o attentado doloso ou fraudulento contra o direito do autor”, mas a Lei Medeiros e Albuquerque também inaugurou o mecanismo do rol de limitações aos direitos autorais, que mantemos até hoje em forma. O art. 22 trouxe sete limitações aos direitos autorais, descaracterizando as condutas descritas como contrafação. Preocupações referentes a entraves possivelmente colocados pelos direitos autorais à liberdade de expressão e educação são nítidos.873

A Lei n.º 2.577 de 17 de janeiro de 1912 estenderia as disposições da Lei Medeiros e Albuquerque (com exceção da imposição das formalidades do art. 13) a obras editadas no estrangeiro, bastando que se comprovasse o cumprimento das formalidades impostas pelo país de origem (art. 2º).

O Código Civil de 1916 veio a substituir as disposições da Lei Medeiros e Albuquerque, mas nela nitidamente se inspirou. Os arts. 649-673 do CC/16 trataram da matéria sob a designação “Propriedade literária, científica e artística”, apesar do projeto do Código ter proposto a denominação “direito autoral”.874

O direito exclusivo de reprodução das obras literárias, científicas ou artísticas foi assegurado ao autor pelo período de sua vida, mais sessenta anos a herdeiros e cessionários, a contar do dia do falecimento (art. 649). O art. 666 trouxe um rol de dez limitações aos direitos de autor, e a redação do art. 673 por muito tempo deu espaço à discussão de se o depósito da obra constituiria o direito ou seria simplesmente comprobatório.875

A controvérsia sobre as formalidades seria solucionada com a Lei n.º 5.988/73, de “espírito nitidamente empresarial”, conforme Silveira,876 que suplantou as disposições do Código Civil. A lei de 1973 explicitamente eliminou a ambigüidade do art. 673 do CC/16, apesar de manter muito da redação deste, acrescentando em seu art. 17 que o autor da obra “poderá registrá-la” (grifamos). O prazo de proteção para direitos patrimoniais foi modificado para a vida do autor, acrescido da vida dos sucessores, se filhos, pais ou cônjuge, ou 60 anos no caso dos outros sucessores (art. 42, §§ 1º e 2º). Foi fixado um prazo de sessenta anos de duração para os direitos patrimoniais sobre obras cinematográficas, fonográficas, fotográficas e de arte aplicada, contados do dia 1º de janeiro do ano subseqüente de sua conclusão (art. 45).

A lei de 1973 seria substituída pela Lei 9.610 de 1998, que juntamente à Lei 9.609 de 1998 (programas de computador) contém as principais normas de direitos autorais atualmente vigentes. Dentre as modificações relevantes inseridas na Lei 9.610/98, podem-se mencionar as graves restrições feitas ao sistema de limitações, sob o ponto de vista do usuário (art. 46); a modificação do prazo de proteção para a vida do autor, acrescida de setenta anos aos sucessores (art. 41), e setenta anos após a fixação para direitos conexos (art. 96); proteção a bases de dados (arts. 87); e disposições referentes à violação de TPMs e sistemas de DRM (art. 107), no que fica evidente o espírito maximalista da lei de 1998.

Dando continuidade ao impulso maximalista, uma lei de 2003 introduziu alterações ao título III, capítulo I (“Dos crimes contra a propriedade intelectual”) da parte especial do Código Penal. As alterações foram extremamente mal-redigidas, e abrem espaço a diversos problemas de exegese.877

Notas de rodapé:

865 “Art. 7.º Os Lentes farão a escolha dos compendios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos, com tanto que as doutrinas estejam de accôrdo com o systema jurado pela nação. Estes compendios, depois de approvados pela Congregação, servirão interinamente; submettendo-se porém á approvação da Assembléa Geral, e o Governo os fará imprimir e fornecer ás escolas, competindo aos seus autores o privilegio exclusivo da obra, por dez annos”.

866 “Art. 261. Imprimir, gravar, lithographar ou introduzir quaesquer escriptos ou estampas que tiverem sido feitos, compostos ou traduzidos por cidadãos brasileiros, emquanto estes viverem, e dez annos depois de sua morte, se deixarem herdeiros.
Pennas:
Perda de todos os exemplares para o autor ou traductor, ou seus herdeiros, ou, na falta delles, do seu valor e outro tanto, e de multa igual ao tresdobro do valor dos exemplares. Se os escriptos ou estampas pertencerem a corporações, a proibição de imprimir, gravar, lithographar ou introduzir, durará sómente por espaço de dez annos”.

867 GALDINO SIQUEIRA. Direito penal brazileiro, v. II: parte especial. Rio de Janeiro: Livraria Jacyntho, 1932, p. 793.

868 Art. 344, parágrafo único: “O privilégio da fazenda publica resultante deste e do art. 342 não importa prohibição de transcrever, ou inserir qualquer dos actos acima indicados nos periódicos, gazetas, em compêndios, tratados, ou quaesquer obras scientificas ou literarias; nem a de revender os objectos especificados, tendo sido legitimamente adquiridos”.

869 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil, p. 171-172.

870 Constituição de 1934, art. 113, 20: “Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas é assegurado o direito exclusivo de reproduzi-las. Esse direito transmitir-se-á aos seus herdeiros pelo tempo que a lei determinar”; Constituição de 1946, art. 141, § 19: “Aos autores de obras literárias, artísticas ou científicas pertence o direito exclusivo de reproduzi-las. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei fixar”; Constituição de 1967, art. 153, § 25: “Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas pertence o direito exclusivo de utilizá-las. Esse direito é transmissível por herança, pelo tempo que a lei fixar”.

871 Constituição de 1988, art. 5º, XXVII: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”; art. 5º, XXVIII: “são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas”.

872 GOLDSTEIN, Paul. International copyright, p. 34.

873 Lei Medeiros e Albuquerque: “Art. 22. Não se considera contrafacção:
1) a reprodução de passagens ou pequenas partes de obras já publicadas, nem a inserção, mesmo integral, de pequenos escriptos no corpo de uma obra maior, comtanto que esta tenha caracter scientifico ou que seja uma compilação de escriptos de diversos escriptores, composta para uso da instrucção publica. Em caso algum a reproducção póde dar-se sem a citação da obra de onde é extrahida e do nome do autor;
2) a reproducção em diarios e periódicos de noticias e artigos politicos extrahidos de outros diários e periódicos, e a reproducção de discursos pronunciados em reuniões publicas, qualquer que seja a sua natureza.
Na transcripção de artigos deve haver a menção do jornal de onde são extrahidos e o nome do autor.
O autor, porém, quer dos artigos, qualquer que seja a sua natureza, quer dos discursos, é o unico que os póde
imprimir em separado;
3) a reproducção de todos os actos officiaes da União, dos Estados ou das Municipalidades;
4) a reprodução em livros ou jornaes, de passagens de uma obra qualquer com um fim crítico ou de polemica;
5) a reproducção no corpo de um escripto de obra de artes figurativas, contanto que o escripto seja o principal texto, sendo, porém, obrigatoria a citação do nome do autor;
6) a reproducção de obras de arte que se encontram nas ruas e praças;
7) a reproducção de retratos ou bustos de encommenda particular, quando ella e feita pelo proprietário dos objectos encommendados.”

874 BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas, 1º v. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1941, p. 270.

875 HAMMES, Bruno Jorge. O direito de propriedade intelectual, 3ª ed., p. 59-67.

876 SILVEIRA, Newton. Propriedade intelectual, 3ª ed., p. 53.

8 comentários em “Histórico dos direitos autorais no Brasil

  1. Hey Paulo,
    Que bom que vc voltou a postar!

    Feliz 2010 !

    Este será um divertido ano Dilma x Serra. Imagino que vc deverá ser eleitor da Marina, aceitei?

    MHL

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